FABIANA SERAGUSA
colaboração para a Livraria da Folha
"A corporação estraga uma vida sem dó, só para satisfazer a vontade de uns ou fazer favores para outros. Como são sujos! (...) Se a população soubesse que eles proíbem a polícia de entrar nos morros, que o dinheiro corre solto na cúpula superior. A população não tem ideia da verdade. (...) Hoje que conheço a verdade, sinto nojo de ser um policial."
Esse desabafo é de um PM do Rio de Janeiro que decidiu contar em detalhes os homicídios e as extorsões realizadas pela polícia militar nas ruas e favelas da Cidade Maravilhosa.
Reunidos no recém-lançado "Sangue Azul" (Geração Editorial, 2009), livro escrito pelo roteirista de cinema Leonardo Gudel, os relatos mostram que é "comum" pagar proprina dentro do próprio batalhão para conseguir benefícios como férias, munição extra e aposentadorias antecipadas, mas também revelam o susto e a indignação dos policias novatos ao perceberem que os comandantes da polícia recebem dinheiro dos traficantes.
No livro, essa revolta fica evidente quando o policial Rubens --nome fictício dado ao protagonista real-- toma conhecimento, pela primeira vez, desse tipo de delito. "Cambada de safados! O mais engraçado é que o nosso coronel aparece toda hora na TV, tirando onda de santo". Ele havia acabado de descobrir que seu superior ganhava R$ 70 mil para "deixar em paz" um dos chefes do tráfico.
Em entrevista à Livraria da Folha, o autor Leonardo Gudel conta que foi o policial Rubens quem o procurou para transformar estas experiências em livro, e que os episódios o deixaram tão impressionado que ele não teve dúvidas, aceitou de imediato o desafio. "A narrativa é toda em primeira pessoa, e, para isso, fiz um trabalho minucioso junto com o policial para captar, inclusive, o seu jeito de falar", explica o cineasta, que após a publicação da obra evita manter contato com o PM, "por questão de segurança".
Abaixo, veja quais revelações de Rubens mais surpreenderam Gudel, e entenda porque o autor acha que "fica difícil dizer que um policial é totalmente honesto".
Livraria da Folha - Você tem medo de sofrer algum tipo de atentado?
Leonardo Gudel - Prefiro não pensar nisso.
Livraria da Folha - Há alguma história inventada ou "incrementada" no livro?
Gudel - Todos os fatos foram escritos seguindo fielmente o que o policial me contou.
Walter Carvalho/Divulgação
Leonardo Gudel (foto), autor de "Sangue Azul", mostra relato de policial militar do Rio de Janeiro
Livraria da Folha - O que mais te surpreendeu?
Gudel - A trajetória brutal de uma pessoa comum, que entra num emprego que é obrigado a matar e acaba se acostumando com isso. Você consegue imaginar um ser humano nestas condições? Antes de escrever o livro, eu nunca tinha parado para pensar nisso.
Livraria da Folha - Qual dos relatos você nem imaginava que ocorria entre os policiais?
Gudel - Achei incrível a sensação que ele passou de se sentir um marionete nas mãos dos comandantes de batalhão que recebem dinheiro de traficantes. O comandante manda a viatura estacionar na frente do morro, para a população de classe média, que passa de carro, se sentir segura, mas o tráfico continua operando, mesmo com os policias por perto. É muita cara de pau.
Livraria da Folha - Em algum momento você notou arrependimento do policial?
Gudel - Várias vezes ele me disse: "Eu só faço o furo, quem mata é Deus". Uma pessoa que convive diariamente com a morte acaba criando um bloqueio na cabeça para não pirar. Ela acaba se tornando insensível ao que normalmente nos chocaria. Mas sim, eu notei um arrependimento da parte dele.
Livraria da Folha - Em qual ocasião?
Gudel - Quando o policial começou a notar que a violência estava entrando na casa dele. Na época que a família o deixou, ele se tocou que estava agindo com sua mulher e filho como ele agia diariamente no trabalho. Isso foi um choque. Foi aí que ele percebeu que estava tudo errado.
Livraria da Folha - Mesmo que a intenção de um policial seja honesta quando ele entra para este trabalho, você acha que, no fim, ele acaba igual a um bandido?
Gudel - Eu acho que quando uma pessoa honesta entra para PM ela pensa que pode se manter longe da chamada "banda podre". O problema é que não existe esse conceito de "banda podre". Pelo o que o policial contou, dentro da estrutura do batalhão, os policiais têm que pagar propina para outros policiais para conseguirem benefícios como férias, munição extra, transferências. Pequenos delitos diários que acabam virando rotina e se transformando em algo normal. É como a farra das passagens aéreas dos políticos. Teve gente usando indevidamente o dinheiro do povo sem sentir, como se aquilo fosse normal.
Livraria da Folha - Por sua experiência e por tudo o que ouviu, você acha que existe policial totalmente honesto?
Gudel - Dentro dessas condições, de acharem que pequenos delitos não são ilegais, fica difícil dizer um policial é totalmente honesto. O que ficou claro para mim no relato é que a intenção da maioria dos policiais é verdadeiramente boa. O problema é que muito deles nem percebem que estão praticando crimes, ou se percebem acham que é uma coisa menor.
Livraria da Folha - Quem você acha que não vai gostar do seu livro? Policiais, políticos, traficantes?
Gudel - Acho que os policiais vão gostar, pois com certeza eles querem melhores condições de trabalho. Sobre a opinião de políticos e traficantes, eu realmente não sei responder.
Livraria da Folha - Você acha que o livro pode ajudar a mudar esta situação?
Gudel - Espero que sim. O livro expõe a situação. Esse é o primeiro passo para que algo seja feito a respeito.
Livraria da Folha - O policial acompanhou a produção do livro, lendo trechos? Pediu pra alterar ou suprimir algo?
Gudel - Ele acompanhou de perto. A narrativa do livro é toda em primeira pessoa, para isto fiz um trabalho minucioso junto com o policial para captar inclusive o jeito dele falar. Durante o processo, ele me contou alguns fatos surpreendentes, mas em seguida pediu para não serem escritos no livro. Eu respeitei.
Livraria da Folha - O que mudou na sua visão em relação aos policiais?
Gudel - Confesso que antes do livro eu não simpatizava nem um pouco com os policiais. Hoje eu admiro a coragem e a força de vontade desses homens. É difícil julgar, pois cada um sobrevive como pode dentro da guerra. Espero que a discussão gerada em torno do livro possa trazer melhores condições de trabalho e vida para eles.
Livraria da Folha - Há quanto tempo você não fala com o policial?
Gudel - Por questão de segurança, prefiro não responder.
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Retirado de: http://www1.folha.uol.com.br/folha/livrariadafolha/ult10082u657435.shtml
Enviado por: CD Pereira
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