quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Estudando o Ato de Matar

Autor: Danilo ferreira

Quem ingressa numa corporação policial sabe da real possibilidade de, em serviço, ser obrigado a matar uma pessoa. Essa possibilidade é citada em vários momentos da formação dos policiais, principalmente quando se quer despertar o senso de responsabilidade dos alunos, futuros policiais, demonstrando que a profissão possui a sensível peculiaridade de lidar com a vida, própria e alheia. Porém, essa é uma maneira superficial de encarar o ato de matar, e me arrisco em dizer que há uma séria negligência nas polícias em relação às causas e conseqüências que envolvem tal ato.

A leitura do livro “Matar! – Um estudo sobre o ato de matar”, do Tenente-coronel Dave Grossman, da Infantaria do Exército Americano, traz profundas reflexões sobre o assunto, e mostra a complexidade do emaranhado de mecanismos que levam o indivíduo a matar, e os sentimentos conseqüentes de tal ato. Apesar da ênfase no ambiente das Forças Armadas, Grossman, que é psicólogo e historiador, faz apontamentos completamente aplicáveis à atuação policial, chegando a citá-la algumas vezes.

A primeira observação a ser feita é que o ser humano, naturalmente, possui uma resistência em tirar a vida do seu semelhante. Essa resistência chega a limites tais que o autor chega a demonstrar dados que apontam para a simulação, por combatentes de guerra, de que estão atirando contra o inimigo, ou mesmo, propositadamente, erram os alvos humanos em quem deveriam acertar. Pior: existem casos onde o combatente chega a morrer pelas mãos do inimigo, mas não consegue “quebrar” a resistência que possui em matá-lo.

Mas Grossman aponta diversos fatores que possibilitam a quebra dessa resistência, variáveis que, se preenchidas adequadamente, levam o indivíduo a pôr fim à vida do seu semelhante:

1. A Distância Física: Quanto mais distante, mais fácil matar. “De longe, ninguém parece amigo”. Por isso, os snipers possuem uma vantagem – não só essa – em relação aos que tentam matar alguém corpo-a-corpo, com uma arma branca, por exemplo. A expressão do medo da vítima, sua resistência e seu desespero não são vistos;

2. Absolvição do Grupo: “Não é o indivíduo que mata, mas sim o grupo”. Já tratei aqui sobre a pressão que o grupo exerce sobre o indivíduo, especificamente na atividade policial. Em momentos específicos, o envolvimento do grupo pode ser fundamental para incentivar que alguém mate;

3. A Distância Emocional: A distância emocional se estabelece quando não reconhecemos o outro como nosso semelhante. Isso vai desde o ato de chamar cidadãos infratores de “bicho”, “vagabundo” ou “meliante”, até o preconceito racial já existente na sociedade, que considera pessoas negras inferiores. Hitler usou esse mecanismo para fazer com que sua tropa executasse judeus;

4. A Natureza da Vítima:
Talvez esse seja o mais inteligível dos mecanismos de “acionamento do botão” para matar. A vítima traz risco para mim ou para o grupo a que pertenço? Qual a recompensa em matá-lo? É o que leva as pessoas a matarem quem está ameaçando sua família, por exemplo.

Esses são apenas quatro dos muitos fatores trazidos por Matar!. Um deles, que não está esboçado acima, merece uma atenção especial das academias de polícia, o condicionamento.

O Condicionamento

Quem já freqüentou uma instrução de tiro policial sabe que pouco ou nada se usa de reflexão e subjetividade. A idéia é que o policial consiga atirar “sem pensar”, agindo após o simples estímulo do instrutor. Ao ouvir um grito de “vai” ou o silvo do apito o policial deve, de pronto, realizar os disparos.

Esse mecanismo de instrução baseia-se no condicionamento operante, desenvolvido pelo psicólogo Frederic Skinner. Para utilizá-lo perfeitamente numa instrução de tiro, por exemplo, é preciso que o aluno visualize no alvo algo bem próximo do que seria um corpo humano. Se for uma silhueta humana apontando uma arma para o aluno chegaremos bem próximo do objetivo. Digamos que os alvos estejam dispostos dentro de uma residência, e o aluno vai progredindo e atirando neles assim que os encontra. Ao acertar o alvo, ele cai, ao errar, o aluno recebe algum tipo de punição.

Se isso for feito exaustivamente, durante meses, certamente se criará um grupamento de policiais aptos a acertar alvos humanos. Apesar de não ser autosuficiente, a instrução condicionante já levou alguns exércitos a ser bem mais eficientes no ato de matar inimigos – ou grupamentos policiais especiais no ato de matar infratores. Os Estados Unidos fizeram isso no Vietnã, do mesmo modo que Hitler usou a “distância emocional” na II Grande Guerra.

* * *

Passamos rapidamente por alguns aspectos que levam alguém a matar. Mas, depois de realizado o ato, o que ocorre com o autor? Não são raros os casos em que combatentes, militares ou policiais realizam o feito de tirar a vida de alguém e acabam adquirindo seqüelas psicológicas para toda a vida. Pesadelos e recordações referentes ao fato ocorrem constantemente, e muitos deles vivem o que em psicologia se chama de “transtorno de estresse pós-traumático”:

“Transtorno do estresse pós-traumático é a recorrência do sofrimento original de um trauma, que além do próprio sofrimento é desencadeante também de alterações neurofisiológicas e mentais.”

Leia mais sobre Transtorno do estresse pós-traumático.

Dave Grossman termina seu livro com um alerta à sociedade sobre a apologia à violência e ao ato de matar que se encontra na mídia atualmente – filmes, videogames, seriados etc. Assim como soldados são condicionados recebendo incentivos ou punições ao acertar, ou não, um alvo na instrução de tiro, os jovens que assistem a filmes com violência explícita podem ser condicionados. Nesse caso, ao ver pessoas sendo mortas, não há punição, apenas o sabor agradável do refrigerante e da pipoca no cinema, além do afago da namorada (o), sensações que servem como reforço positivo.

Os aspectos trazidos por “Matar!” são de extrema importância para a atividade policial. As variáveis da complexa equação que leva o indivíduo a matar alguém devem ser estudadas minuciosamente pelas polícias, para direcionar a atuação dos agentes policiais ao que está determinado na lei. Em comparação com os militares das Forças Armadas, vivemos uma realidade ainda mais sensível, pois não podemos trabalhar com o conceito de “inimigo”, e sim com o que conhecemos com “legítima defesa”. Creio que desvios como execuções cometidas por policiais e até os chamados “grupos de extermínio” podem ser reduzidos com o bom uso desse conhecimento.

PS1: Matar! foi o mais importante livro policial que li em 2009. Adquira a obra por módicos 35 reais na Biblioteca do Exército;

PS2: Leia a matéria da Revista Piauí sobre as tatuagens dos jovens soldados americanos que atuaram no Iraque e no Afeganistão, e veja alguns dos mecanismos aqui citados.

Retirado de: http://abordagempolicial.com/2010/01/estudando-o-ato-de-matar/

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