sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010
Discutir a polícia militar e sua atuação é assunto para quem viveu de perto a violência oficial ou ouviu o argumento de quem amedronta a sociedade
Pedro Henrique Queiroz era um bacharel em Direito que vivia em Goiânia. Na noite de 7 de setembro de 2008 o rapaz de 22 anos e a esposa, Pabline Queiroz, voltavam de carona do batizado do filho de sete meses. Ao passar por uma rua do setor Jardim América, segundo o motorista do carro, não viram uma blitz da Agência Municipal de Transito (AMT) e continuaram. Foi quando o bacharel virou vítima de um tiro na nuca disparado pelo policial militar Gevane Cardoso da Silva, que trabalhava naquele domingo a serviço da AMT. O jovem ficou internado, mas teve morte cerebral decretrada em 10 de setembro de 2008. Aí começa o drama da família de Pedro Henrique e continua o sofrimento de muitos parentes de vítimas da violência policial no país.
A morte de Pedro Henrique foi assunto de uma conversa assustadora em uma tarde de terça-feira deste mês. Eu me vi no meio de um mar de incompreensões e falta de percepção.
Os policiais envolvidos no caso, principalmente o autor do disparo, Gevane, diz que tentou acertar a roda. O pior de tudo é que existe quem defenda esta tese infundada com argumentos surpreendente e inacreditáveis.
Eu, que não me dou ao trabalho de tirar o fone do ouvido e não costumo parar de fazer o que preciso para escutar conversa alheia, neste dia fui atraído pela incoerência e radicalidade do discurso favorável à violência policial. Me lembro bem da frase que me chamou a atenção: "Todos dizem que o moço (Gevane) atirou para matar, mas ele disparou contra a roda do carro."
A partir daqui me darei ao direito, por questões pessoais, a não citar o local onde a conversa se deu nem o nome dos envolvidos na ocasião. Por isso usarei denominações fictícias.
A genialidade da mulher que dava sua resolução para o caso do policial que até hoje não sofreu nenhuma punição, nem mesmo militar, era de deixar de cabelos em pé até o mais simples telespectador do Faustão em pleno domingo de sol e praia. Em uma sala com a porta fechada, um clima tranquilo, quase todos calados, se inicia o assunto de interesse do texto. "Aquele rapaz que dizem ter sido assassinado há mais de um ano... o policial atirou na roda do carro."
O que me fez parar de pensar, de escrever, de digitar e de viver naquele momento foi a frase seguinte: "É que a bala bate na roda e pode tomar qualquer direção, pode ir para cima, para baixo, ou para qualquer lado. Ela bateu e foi para o lado do banco." O incompreensível é que a bala atingiu a nuca de alguém sentado e não havia furo no pneu do veículo. O argumento, dias após o ocorrido, do policial era de que o motorista deu um cavalo de pau e fugiu propositalmente da blitz. A história contada por quem estava no carro é completamente diferente. Bom cabe à Justiça condenar ou não. Quem sou eu para dar o veredito!
Eu fiquei mais de meia hora imaginando um projétil atingindo uma roda de metal e desviando sua tragetória de uma maneira impressionante, como no filme O procurado, no qual o atirador é treinado para fazer a bala tomar a direção necessária desviando de obstáculos com curvas para qualquer direção. O que me passou na hora em que ouvi a frase de Janaína, a mulher da conversa, foi a parte final da produção, que conta com Angelina Jolie no elenco, na qual a própria Jolie atira, em uma sala em formato circular, com pessoal reunidas quase que em formato de roda, e um único tiro atravessa todas as cabeça e extermina a sociedade secreta de matadores, inclusive a autora do disparo.
Foi o momento em que desisti do filme, mas forcei a barra para ver até a última cena e não desligar o aparelho de dvd. O mesmo aconteceu durante a conversa, que até então eu não participava. Demorei para tomar a iniciativa de soltar a voz e perguntar algo. Antes me lembre que Janaína é esposa de Medeiros, um capitão da Ronda Ostensiva Tática Metropolitana (Rotam) a serviço do Poder Legislativo. Resolvi não me pronunciar.
A continuação do raciocínio da moça, estudante de Direito, o mesmo curso da vítima do disparo, me deixou atormentado, mas seguiu a linha esperada depois de ouvir que uma bala pode tomar qualquer direção ao bater em um pedaço de metal em movimento e atingir a nuca de uma pessoa sentada dentro de um carro. Respire fundo e saiba que esse é um pensamento comum em nossa sociedade, talvez até você (infelizmente) concorde: "Se fosse eu teria metralhado o carro. Se a pessoa foge de uma blitz não é boa coisa, tem algo de errado."
Poucos meses antes, Medeiros contou para um grupo, do qual eu fazia parte, como a abordagem da Rotam era "científica." Uma explicação empírica: "O caveira da Rotam é treinado para não errar, não tem essa de violência gratuita. O oficial olha, vê a placa do carro, o jeito do veículo e já percebe que tem algo errado ali." A continuação da aula teórica de práticas militares exemplares é concluida em alto estilo: "Não dá para ser educado com bandido, se você der a oportunidade é o policial que morre, ao invés de matar o ladrão. Criminoso não tem dó, não merece respeito."
A conversa anterior à que remete ao caso Pedro Henrique aconteceu no dia em que divulgaram os vídeos dos testes para ingressar na Rotam, no qual os policiais que aspiram uma vaga no grupo de "elite" da Polícia Militar (PM) de Goiás apanham de várias formas inagináveis e incompreensíveis.
Depois de juntas os dois diálogos, as falas soltas de um mesmo mundo, poderia até concluir que os coitados dos policiais são serem mais humanos, que a culpa é de quem fabricou a arma com erro de potência suficiente para que o projétil atravesse uma simples roda de metal ou que a falha é do engenheiro que projetou o carro. Como ele não pensou que quando atingida por um tiro a roda se tornaria uma arma letal a quem estivesse dentro do veículo?
Pedro Henrique é só mais um nas estatísticas que a polícia prefere dizer que não existe. A falta de preparo, os baixos salários, o baixo nível de instrução educacional, a origem pobre, o histórico de violência e o abuso de poder são a tônica do perfil da maioria dos militares. O continuismo das táticas usadas na opressão do período ditatorial iniciado com o golpe de 1964 ainda deixa seus rastros nas ruas das periferias e bairros pobres de qualquer cidade brasileira. O livro de Caco Barcellos, Rota 66, comprova isso. E é a evidência em texto de que o abuso de poder e a imprudência com uma arma de fogo na mão só vira notícia e chama atenção da sociedade quando morre um filho da classe média confundido com um "suposto" bandido. Depois dessa conversa, acho que me senti mais protegido por saber que existem militares nas ruas prestes a defender o cidadão.
Retirado de: http://consumindorealidade.blogspot.com/2010/02/nao-quero-ser-mais-um.html
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