sábado, 21 de novembro de 2009

Segurança Pública com cidadania

Antonio Jorge Ferreira Melo*

Não existe polícia no mundo que em suas ações, sejam elas investigativas, repressivas, preventivas ou dissuasórias, prescinda do uso ou da expectativa do emprego da força comedida.

O uso comedido e qualificado da força qualifica e distingue as organizações policiais dos exércitos e, também, das gangues, das quadrilhas, das milícias e de outros bandos armados.

Há diferença entre o uso da força e a violência.  O ato violento é universal no sentido perverso, porque todos nós podemos usar. Ele é eivado de ilegalidade, ilegitimidade, improdutividade e, não raro, de sadismo.  O ato de força é o que dá razão de ser ao Estado, pois é o monopólio legal do uso da força que respalda as autoridades que, em seu nome, atuam no cotidiano dos cidadãos.

Mesmo em um regime democrático existe lugar para o uso da força nas ações policiais, com o imediatismo e a tempestividade que estas requerem, mas este lugar não é uma terra sem lei, sem regras ou marcos regulatórios. Portanto, essas ações devem estar subordinadas a dois limites: legalidade e legitimidade.

Nesse sentido, não se pode pensar polícia fora destes marcos regulatórios, senão não é polícia. A verdadeira polícia não agride, nem oprime o segmento da população que, despossuído de sua cidadania e sem acesso aos bens e serviços, mais demanda a intervenção policial  na perspectiva de solucionar os seus problemas.

O problema do nosso país e particularmente da Bahia é que, infelizmente, não temos uma tradição de uso legal dessa força que está em qualquer atividade da polícia. Se o hábito faz o monge, habituados ficamos ao abuso da autoridade, em todos os níveis, principalmente na sua expressão mais concreta que é a brutalidade e a violência policial, preferencialmente sobre aqueles cuja condição social não lhes dá o status de cidadão.

Como se não bastasse ter que conviver com a situação de beligerância entre hordas de criminosos e traficantes de drogas que dominam favelas e bairros periféricos das grandes cidades, implantando a lei do silêncio sobre crimes e toques de recolher informais, não raro, os moradores dessas localidades, sofrem com a paradoxal opressão de um contingente de policiais que se julgam autorizados a agir à margem do que é politicamente pactuado nas leis.

Em nome da luta contra o crime organizado, as quadrilhas desorganizadas, a corrupção, a desobediência à lei, não se pode aceitar a cultura do “tudo vale”, do “tudo pode” em nome de uma “guerra justa”, tornando-se tolerante com as injustiças, o desrespeito ao próximo, o descaso pela vida e o vilipêndio às leis. Pois, como já me referi algumas vezes, tolerar o sofrimento dos outros, a injustiça de que não somos vitimas, o horror que nos poupa não é tolerância, mas egoísmo, indiferença, e, neste caso específico, é tornar-se cúmplice por omissão com a violência policial.

Ao pensarmos em tais questões, entendemos que os abusos de autoridade, os excessos no uso da força, as brutalidades e a violência de muitos policiais têm causas históricas, mas também conjunturais, entre as quais os mecanismos de responsabilização, controle e monitoramento de suas ações que são débeis ou quase inexistentes.

Em sociedades democráticas onde efetivamente há um controle estatal e societário sobre a ação da polícia, o uso da força está estritamente relacionado com o exercício da função policial. Qualquer utilização para além dos limites dos marcos legais e das necessidades pertinentes à situação vivenciada pelo policial constitui, no mínimo, um excesso ou uso indevido do poder, passível de severas punições.

Não se pode pensar em discutir segurança pública no Brasil, nem se pensar em “territórios de paz”, enquanto não se discutir real e efetivamente o emprego qualificado e comedido da força com as diferenças sociais sendo transformadas em desigualdades de direitos, pois, entre nós,  a cor, o gênero, a morada e a ocupação profissional do indivíduo ditam o tratamento que lhe será dispensado pela polícia.

Nesta perspectiva, se entende o porquê de a Bahia não conseguir implantar e manter um programa real e efetivo de policiamento comunitário.

* Antonio Jorge Ferreira Melo é coronel da reserva da PM-BA, professor e pesquisador do Progesp (Programa de Estudos, Pesquisas e Formação em Políticas e Gestão de Segurança Pública) da Ufba, da Academia de Polícia Militar e da Estácio FIB.

Retirado de: http://aqueimaroupa.com.br/?p=8741

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