terça-feira, 26 de janeiro de 2010

ENTREVISTA de Luis Gerardo Gabaldón sobre o controle da violência policial

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Para diminuir o uso da força

ENTREVISTA / Luis Gerardo Gabaldón

Desafiados pelo crime organizado, países da América Latina enfrentam o desafio de melhorar seus corpos policiais em termos de transparência, eficiência e relações com a comunidade. Há três décadas estudando as respostas do controle social em relação ao delito, o catedrático venezuelano Luis Gerardo Gabaldón afirma que alguns fracassos dos atuais regimes policiais da região podem ser resultado dessas serem regidas por normas desvinculadas do controle da violência policial.

Gabaldón, que trabalha na Universidade de Los Andes e na Universidade Católica Andrés Bello de Caracas, afirma que são necessários mais manuais práticos e treinamento adequado para os policiais, assim como uma preparação mais eficiente do uso da força, que enfoque a premissa básica de diminuir o uso da força e evitar a todo custo chegar "além do ponto de não retorno".

Além de seu trabalho acadêmico no Instituto de Criminologia da Universidade de Cambridge e no Centro de Formação para a Liberdade Vigiada, em Vaucresson, na França, Gabaldón tem viajado por toda a região conhecendo a realidade das polícias de diversos países, atuando também como consultor. Nesta entrevista, fala também das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) do Rio de Janeiro e da interação entre polícia e comunidade.

Na América Latina se desenvolveram procedimentos de uso da força baseados na realidade anglo-saxônica. Quais são as principais diferenças, no que diz respeito a América Latina e qual deve ser a prioridade da região?

Os modelos de uso progressivo e diferenciado da força se desenvolveram nos países anglo-saxões que privilegiam o uso instrumental da força, como uma política geral. Não se discute que a força policial possa ou deva ser usada, mas, em que medida e com o maior nível de eficiência possível. Assim como para a produção otimizada de uma quantidade de cereais por hectare requer a dosagem otimizada do fertilizante, para reduzir ao máximo o custo financeiro e de esgotamento do solo, na medida em que a polícia utiliza força regulada estritamente por protocolos definidos se obtém a submissão otimizada do cidadão e, presumidamente, se produz um menor desgaste para a polícia. Esta ótica racionalista não é tão comum na América Latina, onde, por uma parte, a polícia foi deixada a inércia operativa por quem define políticas públicas e onde, por outra parte, o elemento simbólico do castigo policial implícito também no emprego da força física, é muito visível.

Existe em algum país procedimentos de uso da força desenhados na medida da realidade, cultura, contexto latino americanos?

Na América Latina, predominam termos legalistas e formalistas sobre os limites a serem observados pela polícia, especialmente quando se trata de capturas para o processo penal ou durante os procedimentos e interrogatórios. Nesse sentido, prevalece uma visão estreita sobre o uso da força: se supõe que ela é usada apenas para prender um suspeito ou a coerção que implica a sua detenção sob custódia da polícia. Abundam as cláusulas genéricas sobre a proteção dos direitos humanos, que pouco fazem para esclarecer as variáveis situacionais associados ao confronto entre os cidadãos e a polícia. Os departamentos de polícia mais atualizados têm começado a adotar manuais sobre uso diferenciado e progressivo da força sobre os modelos do mundo anglo-saxão, provavelmente porque se, se assume que o uso da força policial deve ter somente um objetivo instrumental, este objetivo é universal e não deveria fazer distinções. No entanto, corpos policiais que adoram esses manuais não os aplicam necessariamente, por falta de formação específica, ou porque se assume ritualmente como uma forma de adaptação da polícia para os novos tempos. Eu acredito que é muito importante para troca de experiências de pesquisa e avaliação, com metodologias uniformes entre os diversos países, mas este é um assunto delicado, onde a obtenção de dados e aplicação de experimentos pode ser difícil devido à estrutura fechada e corporativa da polícia.

Morrem mais civis em encontros com a polícia na América Latina do que nos Estados Unidos. Isto é porque há mais confrontos na América Latina ou porque o tipo de confronto é mais violento?

Argumentei que os cidadãos latino-americanos são mais resistentes a submeter-se à polícia, por uma variedade de razões, entre as quais podemos destacar as coalizões grupais, a desconfiança do poder coercitivo do Estado e da polícia e a falta de disposição, por esta última, de mecanismos altamente dissuasivos que evitam a escalada das situações de confronto e conseguem uma submissão precoce e rápida dos cidadãos diante da coação policial.

Um dos maiores problemas atuais na América Latina é a criminalidade violenta derivada da ‘pandillaje’. Existe em algum país um grupo de procedimentos de uso da força específica desenhado para lidar com menores armados? Como pensar em um tratamento diferenciado para estes jovens?

É difícil prever um protocolo específico de força para lidar com jovens armados, apesar dos estudos mostrarem que os policiais tomam particular cuidado quando se trata dos jovens devido a proteção especial que gozam dentro do sistema judicial; isso, é claro, em igualdade de condições quanto à respeitabilidade, prestigio ou poder de reivindicações sociais. Também foi documentado castigos físicos severos aplicados à jovens por parte da polícia, tratando de dissimular as lesões que um médico forense pudesse certificar, expondo o policial a um processo penal. Inclusive se observou um poder de negociação da polícia delegando as vítimas e agressores juvenis numa sorte de concessões do poder de castigar.

Os jovens são uma população de particular risco frente o uso de força policial, por seu caráter rebelde, pela imaturidade que leva a um uso banal de armas de fogo e por não ter autonomia e amparo social significativo que lhes dê status e poder de reivindicações sociais. Por isso, seria conveniente pensar, em vez de um protocolo separado sobre o uso da força em si, em mecanismos mais flexíveis para implementar o protocolo correspondente, especialmente com objetivo de reduzir a força aplicada, uma vez que, descende à situação de ameaça representada pelo comportamento agressivo juvenil ou resistente, evitando consolidar a situação como "para além do ponto sem retorno no uso da força."

Quais são os fatores desencadeadores mais comuns do uso da força entre os policiais?

A investigação acumulada sugere o peso de algumas variáveis importantes, como o comportamento agressivo do cidadão, a perda do controle verbal no encontro, a escalda do confronto a curta distância, as situações de confusão de identidades entre policiais secretos, a juventude e inexperiência do funcionamento policial e o poder de reivindicação do cidadão, medido fundamentalmente pelo prestígio social e a responsabilidade moral do suspeito. Muitas das variáveis estão relacionadas ao imprevisto, isto é, com a dificuldade de antecipar uma pronta e efetiva saída do encontro por parte da polícia, mesmo porque estas variáveis são provavelmente influentes nos encontros onde a violência policial não estava premeditada e constituía um propósito desde o inicio, como nos casos de execuções extrajudiciais ou mortes como o resultado de maus tratos no cativeiro.

O quão determinante são os preconceitos dos policiais na hora do disparo de uma arma? Por exemplo, no caso do Rio de Janeiro, alguns acadêmicos sustentam que há uma maior predisposição por parte da polícia para disparar uma arma contra um indivíduo se, em certas circunstâncias de tensão, encontram-se em uma favela.

As distorções na utilização da força por razões de condição social ou étnica são complexas. A literatura sobre a utilização de força policial excessiva sobre os negros nos Estados Unidos destaca que uma explicação plausível seria a percepção da ameaça, devido às altas taxas de violência, em vizinhanças segregadas. Isto seria compatível com a idéia de que uma favela, em si, constitui um ambiente perigoso, independentemente do aspecto ou condições de quem ali vive. No nível individual, o juízo moral sobre o suspeito e muito importante: fará menos considerações na aplicação da força se, se tem uma identidade moral deteriorada, pois a mesma população pode reforçar a disposição policial de usar a força excessiva. Mas, a meu ver, o poder das reivindicações sociais ( que não está necessariamente associado ao status socioeconômico, mas a capacidade de mobilizar influências e ‘alavancas’) é um componente importante na decisão policial de incrementar o uso da força aplicada.

Os policiais se queixam da dificuldade de calcular rapidamente, em um momento de alto stress e perigo, a conveniência ou não de usar a força e a intensidade da força usada. É possível treiná-los para uma melhor tomada de decisão nesse tipo de circunstâncias?

Existem departamentos policiais que dispõem de simuladores audiovisuais com situações de confronto que crescem e que, em um determinado momento, deveriam gerar a aplicação de determinado nível de força. Usualmente se circunscrevem ao uso da arma de fogo, pelo qual não só resulta limitada quanto o espectro diferenciado de força, mas que tendem a enfatizar o uso destas armas com propósito letal , enquanto a instrução é: quando se tem que sacar a arma de fogo, use-a e aponte para o centro da massa corporal para neutralizar o agressor”. Creio que esses simuladores são simplificados e não registram a variedade de situações e de meios que devem dispor a polícia para atuar.

Muitos policiais chegaram a considerar o ‘baston’, ‘bolillo’ ou ‘tonfa’ como algo pouco prático, pois não foram treinados para o seu uso. O treinamento situacional requer um inventário de casos que representem a diversidade das culturas e ambientes sociais, que podem variar muito. O mais importante é enfatizar que, por uma parte, deve se manter em alerta o apoio dos companheiros para enfrentar situações complexas e, por outro lado, que não há situação, por mais avançada que tenha ido aos níveis de confronto, que não admita desescalar para utilizar um nível menor de força. É claro, a regra suprema é a preservação da vida humana como valor maior superior a qualquer outro, e o uso da força letal só para defendê-la ou preserva-la. Há um longo caminho a percorrer ainda.

Como se organizam as cadeias de responsabilidade no que diz respeito ao uso indevido da força na América Latina? Estes mecanismos foram suficientes. Esses mecanismos têm sido eficazes para dissuadir (sancionar) o uso excessivo da força (da arma de fogo) pelos policiais? Como melhorar?

A falta de protocolos definidos quando se usa a força incluí a ausência de registros ou reportes para casos de utilização de armamento ou de outro equipamento com potencial lesivo, uma vez que foram implantadas. Departamentos policiais estritos requerem que cada vez que se retire uma arma de fogo se descreva a razão e as circunstâncias que justificaram seu uso, muito mais quando foi disparada, independentemente do resultado do disparo. Na América Latina tudo isso é muito frouxo. Não só se permite, em alguns casos, se exige, que os funcionários policiais adquiram sua munição ou se permite armas complementares, mas que não existem registros balísticos nem inventários de armamento, subsistindo uma grande promiscuidade no uso das armas. Os disparos não exigem, em geral, um informe circunstanciado. Por outro lado, existem critérios jurisprudenciais, como no caso venezuelano, que permitem interpretar como exercício de um dever o disparar a um carro em fuga sob a presunção de que delinqüentes estavam em fuga. Se a tudo isso se adiciona uma flexível supervisão interna do comportamento policial cotidiano, geramos condições favorecedoras do descontrole. Todo isso fomenta uma cultura de tolerância e normalização no uso extremo da força física por parte da polícia.

Sociedades que padecem de altos níveis de violência tendem a tornarem-se mais tolerantes com o uso excessivo da força por parte da polícia. Como lidar com a exigência de segurança por parte da população, que inclusive, avalia o excesso da força?

Efetivamente, parece haver uma correlação entre a violência social e a violência policial, a qual não é surpreendente porque a polícia é parte também da sociedade e está sujeita às demandas, pressões, exigências e juízos que tendem a ver a violência na repressão do delito como a resposta mais adequada á violência que acompanha a delinquência. E a polícia tende a medir muito bem quais são os níveis de tolerância institucional e coletiva em relação à violência. De modo que, como mostra estudos comparativos, as medidas mais efetivas para permitir o consentimento informado, a discussão cidadã sobre o uso da força e o peso das ‘recomendações sensatas’ é muito mais provável em sociedades com baixas taxas de criminalidade violenta. As políticas mais imediatas a esse respeito são o controle efetivo de armas de fogo em mãos particulares e o treinamento policial para o uso diferenciado e progressivo da força, medidas que devem ser aplicadas em paralelo para consolidar o monopólio estatal no uso da coação armada.

A interação entre polícia e comunidade parece ser um dos aspectos imprescindíveis para melhorar o uso da força. Como é possível melhorar essa relação?
Muito se falou da comunidade como um coringa e da necessidade de que a polícia conte com o apoio da mesma. Isso não é tão simples, pois existem muitas comunidades e dentro de cada uma subsistem atores e grupos com interesses diversos. Se algum sentido tem a polícia chamada comunitária é a de facilitar regimes de conflitos por vias pacíficas, jurídicas ou não, mas com reconhecimento institucional. Nesse sentido funcionaria como uma instância de mediação. Este modelo não pode ser universalizado para todo o serviço de polícia, pois existem muitas formas de delinquência, muitos tipos de delinqüentes e estruturas organizadas que desafiam o poder mesmo do Estado.

Qual a sua opinião sobre as Unidades de Polícia Pacificadoras no Rio de Janeiro?

As Unidades de Polícia Pacificadora são uma iniciativa muito recente no Rio de Janeiro, criadas mediante um decreto do início de 2009 e cujo efeito deveria ser submetido à avaliação antes de ser opinado. Contudo, o perfil que define o Decreto 41.650 é o de “uma tropa especializada e tecnicamente preparada para exercer ações de pacificação e manutenção da ordem nas comunidades carentes”, o que sugere, além da premissa de risco que se outorga aos seus membros, um perfil de “ocupação tática” para expulsar (ou para conseguir desalojar) outras forças ilegítimas, como comandos do narcotráfico ou paramilitares, e nesse sentido é difícil imaginar que perfil de resolução capilarizada de conflitos poderia desempenhar. Poderia se tratar de um rótulo que esconde um desempenho baseado no desdobramento simbólico e altamente ostensivo da Polícia Militar, a fim de gerar imagens de ‘segurança e controle de espaços’ que tenham sido confiscados para o Estado em muitas das áreas urbanas mais pobres do país.

Fonte: Comunidade Segura

http://www.comunidadesegura.org.br/pt-br/MATERIA-Premissa-basica-policial-diminuir-o-uso-da-forca

Postado por André Silva - Jornalista e Especialista em Criminalidade e Segurança Pública - andreluizjornalista@hotmail.com

Retirado de: http://questaodesegurancapublica.blogspot.com/2010/01/entrevista-de-luis-gerardo-gabaldon.html

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