sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Comissão da Verdade deve apurar também os casos de tortura

Por Devair em 25 de fevereiro de 2010

Direitos Humanos ditadura militar Justiça

Comissão da Verdade deve apurar também os casos de tortura de quem sobreviveu, diz especialista

Brasília – O grupo de trabalho (GT) encarregado pelo presidente da República de elaborar um projeto de lei até abril para a instalação de uma comissão da verdade que apure crimes comuns cometidos por agentes públicos na época da ditadura militar (1964-1985) está levantando experiências estrangeiras para iniciar a redação do projeto.

O GT convidou a advogada norte-americana Priscilla Hayner para uma oficina de trabalho hoje (24) em Brasília, mas, com um problema de agenda, ela não pode vir ao Brasil. Ela é autora do livro Unspeakable Truths (Verdades Não Ditas), de 2001, sobre comissões da verdade que funcionaram na África e na América do Sul. Atualmente é diretora do escritório do Centro Internacional para Justiça de Transiçãoorganização na Suíça.

Por telefone, de Genebra, a advogada falou à Agência Brasil. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Agência Brasil - O Brasil preparado um projeto de lei para criar uma comissão da verdade que apure crimes cometidos pela ditadura militar. Qual expectativa a senhora tem quanto a esse processo?

Priscilla Hayner - O ideal seria uma comissão da verdade que traga muito mais informações sobre o que aconteceu, acessando os arquivos oficiais, ajudando a encontrar os restos mortais de desaparecidos, falando com as vítimas sobreviventes e parentes das pessoas mortas. A comissão também deve ser capaz de reunir informações de organizações não governamentais e de inquéritos administrativos no passado. Não há motivo para não se ter acesso a todos arquivos. A comissão tem que ter poderes suficientes para ter acesso a qualquer informação. Ao mesmo tempo, a comissão deve ter o cuidado de respeitar os direitos de quem se envolveu com a repressão.

ABr - Há alguma experiência emblemática de comissão da verdade no mundo?

Hayner – Peru, Timor Leste e África do Sul tiveram experiências interessantes, mas não há modelo para copiar. Cada comissão da verdade é concebida de acordo com o contexto nacional. O Brasil terá seus próprios termos de referência. Esse processo leva tempo para planejar, fazer consultar públicas e permitir que os sobreviventes e as famílias das vítimas possam ser ouvidas no processo. Um erro que deve ser evitado é daquelas comissões nas décadas de 1980 e 1990 que limitaram a apuração às pessoas que foram mortas ou desapareceram, mas não examinaram os casos de tortura de quem sobreviveu. Não é boa ideia excluir grupos ou categorias de vítimas.

ABr - O que é mais importante fazer: punir culpados, reparar materialmente as vítimas e parentes ou reconciliar o país com o seu passado?

Hayner - É difícil priorizar um desses enfoques, pois estão interligados. Deve-se escolher um objetivo e reparar as vítimas e parentes. Mas não dizer a verdade e nem pedir desculpas também resulta em ressentimento. As reparações não pode substituir o direito de saber o que aconteceu. Para quem perdeu um ente querido, a reparação material é pouco. Há certamente a necessidade de se julgar o que aconteceu. Quando há milhares de agressores pode não ser possível processar todos. É importante que os principais responsáveis prestem contas.

ABr – Como a comunidade internacional de defensores de direitos humanos vê a transição da ditadura para a democracia no Brasil?

Hayner - Existe um reconhecimento de que não foi feito o suficiente. A situação brasileira é interessante porque não houve um completo silêncio ou uma rejeição completa de olhar para o passado. Mas há muita coisa faltando. Houve esforços para levantar o que ocorreu e ainda há uma grande quantidade de informação escondida. Agora, o Brasil faz um esforço muito mais robusto para obter o que está oculto e desconhecido.

ABr – Especialistas veem a violência policial como herança do regime militar. O trabalho da comissão da verdade pode repercutir nessa atual violência?

Hayner – Certamente, a intenção de uma comissão da verdade é reduzir a impunidade e qualquer forma de violência oficial em curso, como é o caso da polícia. Mas além do trabalho da comissão, há outros fatores como a vontade política para implementar as recomendações. Uma parte central do mandato de uma comissão é a mudança e não permitir a continuação da violência. A simples prestação de contas é insuficiente, pois deve haver um esforço para evitar futuras violações.

ABr - O tema dos direitos humanos é sempre muito criticado no Brasil. Essa resistência é comum em outros países?

Hayner - Definitivamente não há mais contextos em que o público desconheça totalmente os direitos humanos. Os envolvidos nas violações não devem obter a imunidade. A responsabilidade é essencial. A construção de um profundo e robusto sistema democrático e Estado de Direito exige uma centralidade muito firme de respeito pelos direitos humanos.

ABr - No direito internacional, é comum que a anistia perdoe a violência de agentes do Estado?

Hayner - Em geral, a anistia não é considerada aceitável para certos crimes, como crimes contra a humanidade, genocídio, crimes de guerra, crimes internacionais.

ABr - Passados mais de 15 anos do fim do apartheid na Africa do Sul e de início do processo de reconciliação nacional, como a senhora vê o país de Nelson Mandela?

Hayner - Eles ainda estão trabalhando sobre essas questões. A comissão da verdade foi muito importante, mas no processo todos perceberam que não era suficiente. Questões de reconciliação e de justiça continuam a ser urgentes e apresentam questões para o futuro. Pessoas como [o bispo anglicano e Nobel da Paz] Desmond Tutu compreenderam que a conciliação não é alcançável rapidamente, leva tempo. Houve uma proposta de anistia mais tarde, mas as vítimas se opuseram a uma ampla anistia. As reparações também foram complicadas, uma fonte de frustração. As vítimas geralmente não receberam o que eles pensavam era devido. Os desafios econômicos e desequilíbrios raciais continuam. A comissão da verdade foi importante, mas não não resolve todo o problema.

*Tradução de Claude Allen Bennett Junior. Colaborou Paula Laboissière

Fonte: Agência Brasil

Retirado de: http://www.jornaldasmontanhas.com.br/2010/02/comissao-da-verdade-deve-apurar-tambem-os-casos-de-tortura-de-quem-sobreviveu-diz-especialista/

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